'Capital gay': livro conta 'A audácia dos invertidos', a história da vanguarda LGBT no Rio
25/10/2025
(Foto: Reprodução) Entre as décadas de 1950 e 1990, o Rio de Janeiro foi a capital gay do Brasil. É o que conta Rodrigo Faour, no seu novo livro "A audácia dos invertidos", que será lançado em um show no Teatro Rival, no próximo dia 5, que pretende reviver o cenário dessa época.
As histórias vão da origem do termo "sapatão" até a vida da primeira travesti assumida em uma grande empresa do país, passando pelo encontro entre o filósofo francês Michel Foucault e Madame Satã.
Paulette Couto, funcionária travesti que teve uma arreira de 30 anos no Banco do Brasil.
Acervo de Rodrigo Faour
O próprio título da obra já conta uma história. "Audácia", segundo conta Faour, era uma gíria gay dos anos 70, e "invertidos" era um termo pejorativo usado para se referir à comunidade.
"Era sempre invertidos, anormais ou imorais", conta.
O autor – que já publicou três livros sobre música popular brasileira e biografias de figuras como Beth Carvalho e Cauby Peixoto – reúne relatos de cerca de 50 pessoas, entre anônimos e famosos, sobre a vida da comunidade queer na cidade, durante um período que considera ter sido palco da vanguarda determinante para o avanço dos direitos LGBT no país.
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"A audácia dos ivnvertidos", de Rodrigo Faour.
Reprodução
'O pecado pesa menos'
Na sua primeira visita à capital carioca, em 1979, o carnavalesco paraense Milton Cunha, sentiu que, no Rio de Janeiro, "o pecado pesa menos". Em poucos dias, decidiu que moraria na cidade.
"Em 1982, peguei um pau-de-arara e vim-me embora", conta, no epílogo do livro de Faour.
Mas, antes da Galeria Alaska, do Papagay e da Praia de Ipanema – lugares em que a vida pulsante da comunidade LGBT carioca dos anos 80 encantou Cunha – houve a Cinelândia.
Milton Cunha e Rose Bombom, em 1996.
Acervo de Rodrigo Faour
Uma "cidade gay". Foi assim, contou Faour ao g1, que Edy Star descreveu a impressão que teve do Rio de Janeiro quando chegou, pela primeira vez, na praça no Centro conhecida como a Hollywood carioca, em 1963.
O multiartista baiano, além de amigo, à quem autor dedicou o livro, foi uma "testemunha ocular do mudo gay" e um dos personagens que contribuíram para a obra, com relatos e registros.
Multiartista baiano Edy Star, em 1974.
Acervo de Rodrigo Faour
A partir de relatos como esses, Rodrigo percebeu que, além de capital cultural do país, o Rio foi também a capital da vanguarda nos costumes, no século 20.
"Vinham LGBTs do Brasil inteiro, para o Rio de Janeiro, porque aqui se liberavam mais", explicou.
Quando começou a perceber a importância da história queer na cidade e a escassez de registros sobre ela, Faour tomou para si a tarefa de preservar essa memória.
Memória urgente
Foi em 2020, durante a pandemia, que o escritor tomou essa decisão. Ele, que tem o que chama de "mania de registro", publicou nas redes sociais uma série de fotos que tirou na noite gay dos anos 90, quando assumiu sua sexualidade.
As postagens suscitaram uma "avalanche" de relatos e memórias nos comentários. Desconhecidos contaram suas histórias e antigos amigos retomaram o contato. Ali, ele percebeu que "havia uma memória urgente a ser destrinchada" e decidiu torná-la tema do seu mestrado.
Rodrigo Faour e Lorna Washington no Bar da Le Boy, em 1996.
Acervo de Rodrigo Faour
"A gente tem um problema crônico no Brasil de memória, de não valorizar a memória", analisa.
A pesquisa começou com o que estava mais perto, a própria história. Mas, logo, Faour se deu conta de que não sabia quase nada sobre as gerações que vieram antes dele. E escolheu como ponto de partida para sua pesquisa os anos 50.
Isso porque havia testemunhas vivas que podia entrevistar, inclusive algumas que não chegaram a ver o livro publicado. Mas, também, porque o autor considera a década um marco.
Foi nela que o Teatro João Caetano, uma importante casa cultural do governo, passou a sediar um concurso de fantasias para homens, vestidos como mulheres – um baile de travestis.
Imagens do baile de travestis nas páginas do livro.
A audácia dos invertidos
No fim das contas, os anos 90 da sua juventude ficaram para um próximo livro. Isso porque, naquele período, a cultura LGBT sofreu um revés muito marcante. "Era uma era um negócio que estava ficando muito forte e de repente vem a AIDS e dá um break nisso, porque aí era o 'câncer gay', né?", contou.
"É importante dizer para essa turma de hoje que são direitos que conquistamos com muita dificuldade", reflete. "E essa união é muito importante para a comunidade, para a gente fazer a força e não deixar retroceder."
O resultado dessa pesquisa foram mais de 500 páginas de histórias, muitas delas inéditas e a consolidação de uma memória da comunidade.
"Eu tinha uma família antes de escrever esse livro, agora eu tenho duas."
Algumas, das muitas, histórias
Sapatão
Um termo que, na boca da sociedade heterossexual, chegou a ter uma carga pejorativa, surgiu, na verdade, de uma brincadeira entre lésbicas cariocas.
Faour resgatou a história do livro de memórias do produtor e Poeta Paulinho lima, que testemunhou o nascimento da palavra "Sapatão".
Ele conta que, em 1971, durante um show de Maria Bethânia, em um teatro na fronteira entre Copacabana e Ipanema, uma dupla de lésbicas que estava no balcão, olhando o público, comentou sobre o andar de uma amiga.
"Tá pesadona, vai ver que são as botas", disse uma à outra. "É o sapatão!", concluiram. Acharam graça do termo, que acabou pegando e gerando variações, como "sapatinha", para as mais novas.
Paulette do Banco do Brasil
Paulo Couto nasceu em Belo Horizonte, na década de 40. Chegou a ser preso, algumas vezes, por seu porte afeminado, ou por frequentar bares da cena gay.
Em 1970, teve a ideia de restar concurso para o Banco do Brasil. E deu certo, passou. Algum tempo depois, pediu transferência para o Rio de Janeiro e lá, com a estabilidade da carreira, aos poucos, começou a se expressar mais livremente no ambiente de trabalho.
Usava roupas mais femininas e chegou a fazer tratamento hormonal. Eventualmente, os próprios colegas passaram a chamá-la de Paulette, e tratá-la no feminino. Claro que houveram percalços.
Um funcionário chegou enviar uma carta para Brasília, dizendo que Paulette difamava a imagem do Banco. Mas ela conseguiu resolver a situação na base da conversa. "Meu chefe disse que eu cumpria muito bem os horários, que era educado, dedicado, e acabei ficando", contou.
Ela se aposentou 30 anos depois. E até hoje, na comunidade LGBT, é conhecida como "Paulette do Banco do Brasil".
Foucault e Satã
Em 1973, o cineasta Luiz Carlos Lacerda recebeu a missão de ser guia turístico do filósofo Michel Foucault. O pedido veio por meio de um assistente seu, que morava em Paris e era aluno do francês.
Foucault queria conhecer a noite gay carioca, e Lacerda pensou logo no Cabaré Casanova. Quando chegaram lá, Madame Satã estava sentado em uma das mesas.
"O Foucault ficou entusiasmadíssimo quando lhe contei a história dele, e então apresentei os dois", relata lacerda. Segundo ele, Satã não deu muita bola ao gringo, cumprimentando-o apenas com um aperto de mãos.